O hino brasileiro é um dos mais deslocados quanto ao ethos pátrio. Em 21 de Agosto de 1922, a letra do hino nacional, feita pelo parnasiano Duque-Estrada, foi oficializada pela oligarquia brasileira. Seis meses antes, de 13 a 17 de Fevereiro, ocorrera a famigerada Semana de Arte Moderna, ponta de lança contra os ditos vícios acadêmicos.
A estranha coincidência entre a legitimação do hino parnasiano e o “surto” modernista de compreender a identidade nacional - ou mesmo construí-la - é um sinal marcante a distância do poder oficialíssimo e o acalorado debate da intelectualidade brasileira.
O mármore neoclássico esculpido por Duque-Estrada de 1909 a 1922 nada lembrava uma pedra-viva de Michelangelo, as trovas de Camões ou o canto de Schubert. O poeta lapidou um monumental enfeite de jardim inglês que se esconde à vista de todos. O arranjo formalista contém os piores vícios do parnasianismo, sem nunca vislumbrar a clareza dos versos de Bilac. Parece mesmo ignorar que se trata de um hino, uma forma poética a ser cantada em coro.
O mau gosto das 1ª e 3ª pessoa do plural toma conta de toda letra. Remete sempre a uma massa amorfa, sem rosto e sem carne. O poeta ignora todo esforço humano quando diz “Gigante pela própria natureza”. Ora, se o Brasil é gigante, continental, não foi Deus que. alla Conferência de Berlim, decidiu “estas divisas serão o Brasil” e deu de bandeja para nós. Foram as bandeiras que pela selva andaram devastando as terras viciosas até então desconhecidas. Foi a expertise dos reis portugueses que bem soube manter fraca a força intelectual de suas colônias. Foi o esforço jurídico de Bonifácio e físico de Dom Pedro I, cidade em cidade, se legitimar como rei do Brasil.
O Brasil de Osório Duque-Estrada é, novamente, aquele Brasil Oficial de Machado, da falsidade burocrática. O Brasil no papel, nos símbolos, e na sua bandeira. O Brasil que queima as bandeiras estaduais para iluminar esta bandeira positivista ditando “Ordem e Progresso”. O hino brasileiro era um hino de anuncio a Vargas.
Se, de um lado, era legitimado um hino ao Brasil oficial, de outro, surgia em São Paulo um esforço de compreender o Brasil Real.
Apesar da devassidão estética da Semana de Arte Moderna, a intelectualidade brasileira retomou o velho debate - talvez caquético - acerca da “identidade nacional” e se perguntava “o que era o brasileiro?” Os olhos tornam a se voltar ao índio, agora acrescido da história bandeirante, um anti-europeísmo travestido de nacionalismo e um europeísmo travestido de modernismo.
Foi muita zuada e pouca literatura. Todo mundo queria ser o cacique do seu clubinho. “A Bagaceira” foi o que começou a levantar as anteninhas dos intelectuais cafezeiros. Em 30, “O Quinze” arrepiou os cabelos das dondocas. Mas só em 1933, “Casa Grande & Senzala” marcou, em definitivo, uma reavaliação de nossas origens sociais e étnicas. O brasileiro não é só o indígena das tabocas, o bandeirante bruto, ou um mulato a ser higienizado pelos europeus. Já na cultura, Manuel Bandeira perceberia a tragédia do carnaval em sua lira. E aqueles do Norte sofriam uma seca que não cabe em um poema-piada.
Aos poucos, aquele mero ímpeto de brasilidade vai, aos poucos, ganhar forma concreta. Durante o conflito mundial, Vargas diz “é mais fácil uma cobra fumar que o Brasil ir à guerra”. Os alemães transformaram nossas praias em cemitério e a cobra fumou. Então, os pracinhas de todos lugares do país vão à Itália honrar nossos cadáveres.
Hoje em dia muitos repetem que “o Brasil precisa de uma guerra para se desenvolver”. Ignoram não apenas a situação atual do país quanto segurança pública, mas que tanto a Guerra do Paraguai, quanto a Segunda Guerra foram fundamentais para formação de uma “brasilidade”. Na Guerra, não se convoca um “exército de paulistas”, de “cariocas” ou “cearenses”, mas um exército brasileiro. No fronte, os soldados carregam a bandeira pátria, não a regional. O paraíba conhece o gaúcho, o carioca o paulista, o paraense o mineiro, etc. E não há tempo de pensar em diferenças, senão morre. Àqueles que voltaram para casa, conheceram mais de identidade nacional, de brasilidade e patriotismo que qualquer intelectual até então. Cada um agarrado a sua fé, sua família, sua terra, de lugares tão diferentes de um mesmo Brasil.
É no espírito das campanhas brasileiras na Itália que Guilherme de Almeida, um fomentador da Semana de 22, escreveu a Canção do Expedicionário. Bem distante dos vícios de nosso Hino, o poeta escreve sempre na primeira pessoa do singular. O eu-lírico pergunta “Você sabe de onde EU venho?” e segue várias respostas tecendo uma gigantesca manta que compõe o Brasil.
A canção inteira é digna de nota, mas creio que a estrofe antes do último refrão seja uma das expressões mais significativas não apenas desta música, mas também como um exemplo de hino:
Venho de além desse monte
Que ainda azula o horizonte,
Onde o nosso amor nasceu;
Do rancho que tinha ao lado
Um coqueiro que, coitado,
De saudade já morreu.
Venho do verde mais belo,
Do mais dourado amarelo,
Do azul mais cheio de luz,
Cheio de estrelas prateadas
Que se ajoelham deslumbradas,
Fazendo o sinal da Cruz !
Nestes seis últimos versos, sintetiza com maestria a geografia brasileira com a presença do catolicismo. As estrelas que se ajoelham fazendo o sinal da Cruz pode ser tanto referência ao “Cruzeiro sul”, quanto à religiosidade do povo que vive sob estes astros.
O refrão é tão significativo que não precisa de tanta explicação. A paráfrase de Gonçalves Dias “Por mais terras que eu percorra,/ Não permita Deus que eu morra/ Sem que volte para lá.” soa como uma prece de alguém com saudade de seu cantinho e estronda uma forte vontade de continuar vivendo. Enquanto o Hino Nacional é apenas um arremedo de patriotada para terminar de legitimar uma oligarquia, a Canção do Expedicionário é uma oração de guerra.